quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Entrevista com Davi Giordano

   “A teatralidade é essencialmente humana. Todo mundo tem dentro de si o ator e o espectador Representar num espaço estético, seja na rua ou no palco, dá maior capacidade de auto-observação. Por isso é político e terapêutico.” Com as palavras de Augusto Boal começo a entrevista com o diretor e dramaturgo Davi Giordano, que é mestrando em artes cênicas pela UNIRIO, é ator formado pela CAL e se formou em artes cênicas com habilitação em direção teatral pela UFRJ. Seu trabalho foi reconhecido no Brasil, na Argentina e nos Estados Unidos.  Davi, conte-nos um pouco a sua trajetória e a experiência de apresentar um trabalho seu fora do Brasil.

Atualmente trabalho como diretor, professor e escritor de teatro. Também desenvolvo trabalhos no campo da performance. Meu trabalho está permeado pelas relações entre o teatro e a performance. Em geral, não gosto muito de me definir, porque acredito que o artista contemporâneo é múltiplo em seus fazeres e qualquer possibilidade de definição acaba mais restringindo do que alargando a compreensão de um trabalho. Eu gosto de trafegar por zonas de criação que alimentam as minhas experimentações. Como diretor, estou no lugar da experimentação cênica. Na sala de aula, gosto de trazer curiosidades, interesses e provocações para compartilhar e aprender junto com meus alunos. Já como escritor, desenvolvo as reflexões de tudo aquilo que venho pensando. Por isso, meus textos transitam entre ensaios, artigos, dramaturgias, poemas, críticas etc. Além disso, sempre gosto de alimentar o meu campo de pesquisa ao estudar o trabalho de outros artistas. Em relação ao contato com outros países, acho que sempre é uma forma maravilhosa de estar em contato com debates e práticas sobre o que vem se desenvolvendo em âmbito de arte contemporânea ao redor do mundo. Acredito que estar junto com outros artistas, críticos e profissionais é sempre uma forma de estimular a formação continuada, sendo consequentemente uma possibilidade de estimular novas inspirações para o meu trabalho artístico e também para os meus escritos. Além disso, acho importante sempre estabelecer parcerias com artistas estrangeiros e pensar em possíveis plataformas de intercâmbio.  

Foi mais difícil montar uma peça sobre Eva Perón, que já existiu ou a fictícia “A Primeira Dama da Costa Bela”?

São peças muito diferentes em termos de processos de criação. Por isso, não sei se seria apropriado dizer “mais fácil” ou “mais difícil”, pois foram caminhos de linguagem, estéticas e poéticas muito distintos. No caso de “Eva Perón”, eu estava trabalhando a partir da dramaturgia de Raúl Copi que descobri enquanto estive morando em Buenos Aires. Tive o contato com o universo do autor através de meu amigo Helder Thiago Maia, que trabalha com estudos literários e que na época também morava na Argentina. Quando Helder me contou sobre o universo queer, irreverente e ousado de Copi, fiquei fascinado e pedi para ler a tradução que ele recentemente havia terminado. Na primeira leitura, fiquei completamente apaixonado, porque o texto do Copi me parecia uma mistura de Almodovar, América Latina, política, comédia e provocação. Além disso, sempre fui tocado pela história de Eva Perón. Por todos esses motivos, resolvi montar este texto. Por se tratar de um texto de outro autor e também de um universo polêmico e pouco conhecido no Brasil, o processo artístico necessitou de muita pesquisa histórica. Por isso, antes de voltar ao Brasil, eu coletei bastante material de pesquisa direto de Buenos Aires. Este material foi fundamental para trabalhar a criação junto com os atores e trazer para o público uma melhor compreensão sobre o universo copiano. Já na montagem de “A Primeira Dama da Costa Bela”, tudo foi muito diferente. Para começar, eu estava dirigindo um texto de minha própria autoria. Isso já modifica todo o processo de criação, pois como diretor eu tinha uma apropriação completa sobre o que faria dentro da sala de ensaio com meus atores. No caso de “A Primeira Dama da Costa Bela”, a narrativa conta a história de uma primeira dama que vive num país ficcional da América Central chamado Costa Bela. Fizemos uma pesquisa sobre o universo das telenovelas mexicanas e sobre a cultura da América Latina, principalmente em relação à América Central. Contudo, por se tratar de um país ficcional, tínhamos plena liberdade de inventar o nosso próprio universo cênico. Isso foi muito gostoso para todos os membros artísticos do processo de criação. Nesse sentido, acredito que a diferença principal entre ambas as peças se deu nas metodologias diferencias da pesquisa em relação ao processo de criação. Como última observação, acho interessante destacar que ambas as peças possuem muitos pontos de encontro: falam sobre o universo feminino, fazem um retrato da América Latina, trabalham sobre níveis de comédia política, a atmosfera da família, os segredos e as hipocrisias das relações humanas. É interessante notar que o texto de “A Primeira Dama” foi escrito em 2009, um ano antes de ter morado na Argentina e conhecer o texto de “Eva Perón”. Sendo que na “Primeira Dama”, a protagonista Verônica Stiller possui uma cadelinha chamada Evita, que naquele momento foi um nome escolhido sem nenhum propósito político. Posteriormente, a atriz Débora Amorim que fazia a protagonista me chamou atenção para o fato e nisso resolvemos inserir uma fala numa das últimas cenas em que Verônica revela que o nome de sua cachorra é uma homenagem para Eva Perón. Acho interessante porque esses jogos de intertextualidades foram surgindo de forma natural sem que houvesse uma intenção intelectual diretiva e impositiva. Sempre gosto quando o processo de criação nos revela esses agenciamentos.

Suas peças são todas melodramáticas? O que te levou a seguir pelo caminho do melodrama? Quais suas principais influências nessa área?

Acho interessante que você não é o primeiro a dizer isso. Muitos reconhecem a linguagem do melodrama presente em minhas encenações. Contudo, não é algo que planejei. Na verdade, para cada peça busco a investigação de gêneros próprios que misturam diferentes linguagens. Nunca consegui compreender minhas peças dentro de gêneros rígidos e específicos. Por isso, para cada peça, busquei brincar com a criação de gêneros. Para Adormecida, disse que era uma “comédia carioca de humor negro trash”; para Eva Perón, considerei uma “encenação queer minimalista”; e para A Primeira Dama da Costa Bela, em consenso com o elenco denominamos como uma “comédia surrealista melodramática latino-americana”. De qualquer forma, as obras sempre se completam com o olhar do público. Se você me diz que observa o melodrama em todas as encenações, fico interessado nessas impressões.

Recentemente você publicou o livro “Teatro Documentário Brasileiro e Argentino” pela editora Arm@zém Digital. De onde surgiu a ideia para escrever esse livro? O que é e como surgiu o Teatro Documentário?

A ideia do livro surgiu a partir da minha vivência e contato com a cultura argentina. Em 2010, fui aceito para participar de dois semestres acadêmicos na Argentina por conta de um intercâmbio de convênio bilateral entre a UFRJ e a Universidad de Buenos Aires. Inicialmente, eu fui para cursar disciplinas de Cinema e Crítica de Arte. No meio do processo, entrei em contato com o Biodrama por conta de uma oficina de seis meses lecionada pela própria Vivi Tellas, criadora do gênero. Além disso, dentro da universidade, eu tive contato com Pamela Brownell que trabalha diretamente com Vivi Tellas. Assim, o meu contato com o Biodrama se deu dentro e fora da universidade, permitindo uma vivência com o universo biodramático de forma teórico-prática. Quando voltei para o Brasil, em 2011, iniciei um projeto orientado pelo professor Denilson Lopes e financiado pela bolsa de iniciação científica PIBIC/UFRJ. O projeto inicialmente tinha como foco geral a investigação de encenações contemporâneas cinematográficas que buscassem problematizar o sujeito cotidiano a partir da estética do Comum. Ao escolher o tema específico da minha pesquisa, eu trouxe a linha do Biodrama como uma forma de problematizar a inserção e representação do homem comum no teatro. Foram doze meses escrevendo. Depois foram mais dois anos para movimentar a produção dos custos para bancar a publicação do livro. Ao todo, considerando desde o meu primeiro contato com o tema, o processo completo tomou quatro anos até o nascimento do livro que aconteceu em novembro do ano passado (2014) com lançamento performático realizado dentro da bela Ocupação Glauce Com Vida no Teatro Glauce Rocha (RJ).   

5) Qual a diferença entre o Teatro Documentário argentino e o brasileiro?

Na Argentina, o Teatro Documentário tem um campo de produção artística e pesquisa maior do que no Brasil, visto que, desde 2002, o Biodrama se fortaleceu enquanto Ciclo e estimulou um movimento teatral muito forte no país, incluindo a sua influência em outros lugares do mundo. Por isso, é possível dizer que, na argentina, os espectadores já possuem um contato maior com linhas de teatro que trabalham com biografias cênicas, histórias reais, experimentação do real em cena, encenação de documentos não fictícios etc. No Brasil, o Teatro Documentário e o Biodrama começaram a se tornar mais conhecidos alguns anos depois, principalmente por conta de trabalhos de grupos e artistas que pesquisam algumas dessas abordagens na cena, como a Cia.Teatro Documetário (de Marcelo Soler), Nelson Baskerville, Janaína Leite, Cia. Hiato, Carolina Virguez, Marcelo Braga, Celina Sodré, Grupo Garimpo, Zula Cia. de Teatro, Grupo Teatro Carmin etc.

Augusto Boal teria sido um dos pioneiros no Teatro Documentário no Brasil, através de espetáculos como Arena Conta Zumbi e Arena Conta Bolívar. Pode falar um pouco sobre isso?

Em meu livro, identifico que uma importante encenação documentária que tivemos no Brasil foi o espetáculo “Marias do Brasil”, dirigido por Augusto Boal. O espetáculo foi criado em 1998 e era composto por empregadas domésticas que nunca haviam tido nenhum contato prévio com a experiência teatral. A proposta do projeto original de Boal era trazer para o teatro a realidade das empregadas domésticas a partir do ponto de vista dessas próprias mulheres.  Elas vieram de diferentes estados do Brasil, tendo como semelhança o fato de que todas tinham o mesmo nome: Maria.  Ao longo de 14 anos, essas mulheres criaram quatro peças de Teatro-Fórum, conceito criado pelo próprio diretor Augusto Boal. Em relação às outras encenações que você menciona, certamente podemos identificar linhas do documentário que estão presentes nas peças. Todas as produções de Augusto Boal estão compreendidas numa linha de teatro político que se aproxima do Teatro Documentário. É importante mencionar que Augusto Boal não denominava as suas peças como Teatro Documentário. Esta é uma leitura que nós estamos fazendo hoje sobre as suas produções. Outro dado importante de mencionar é que pesquisas recentes identificaram a presença de associações filantrópicas italianas e movimentos teatrais operários em alguns bairros de São Paulo nos anos setenta que já revelavam características do Teatro Documentário. Acredito que precisamos de mais tempo de pesquisa para aprofundar as origens do Teatro Documentário no Brasil. Este seria o tema para um novo livro.

Qual a diferença entre o Teatro Documentário e o Drama histórico?

No livro Documentary Theatre in the United States, o autor Gary Fisher Dawson esclarece bem essa distinção. Ele diz que o Drama Histórico seria uma encenação cuja dramaturgia busca fazer uma representação da história a partir de fontes históricas secundárias para recriar a realidade de acordo com a visão criativa do dramaturgo.  Há uma camada de metalinguagem e ironia dramatúrgica, na medida em que os fatos históricos são vistos pela ótica do dramaturgo, quem tem o direito de interpretar a história pela sua ótica subjetiva e criativa.  Enquanto isso, o Teatro Documentário se caracteriza por uma operação de distanciamento de teatro épico que toma a história a partir de uma micro-perspectiva (tendo como base a atualidade e contemporaneidade). Outra diferença é que o Teatro Documentário tem como base fontes primárias que buscam sustentar a evidência dos fatos históricos e persuadir o espectador para uma linguagem da sua época.  A realidade é documentada para o público a partir de uma perspectiva privada. A discussão é bastante complexa. Por isso que, no meu livro, eu explico que uma divisão acadêmica sobre o que seja ou não o teatro documentário pode servir de forma positiva para analisar as primeiras produções sobre tal gênero.  Porém, fazer uso de tais divisões didáticas para compreender as produções contemporâneas seria um falso problema, tendo em vista a diversidade de especificações que a prática documentária no teatro foi ganhando ao longo dos anos.  Temos a impressão que as nomenclaturas clássicas, principalmente o uso de termos como épico, naturalismo, drama, ficção etc podem acabar muito mais restringindo as possibilidades formais do teatro documentário.  Já o meu trabalho caminha no sentido de entender a complexidade de elaborações sobre o tema.   

O teatro documentário primordial contesta o sistema de atuação emocional que diz respeito à primeira fase do trabalho de Stanislavski?

O Teatro Documentário não pressupõe um modelo específico de atuação. Há diversas linhas de experimentação e pesquisas-cenas, o que nos permite pensar que não devemos pressupor uma estética nem uma poética específica para esse tipo de trabalho, mas sim pensar como há inúmeros caminhos de criação. Isso nos faz pensar que o teatro documentário deve ser visto em sua multiplicidade ao invés de um discurso unívoco. Dessa forma, há vários Teatro(s) Documentário(s). Esta perspectiva de visão amplia e aprofunda o debate que ainda é pouco recente no Brasil. No caso da atuação, há peças documentárias que trabalham com atores que não são profissionais. As formas de atuação dependem sempre do conceito de encenação do diretor. Isso varia de espetáculo para espetáculo.

A atriz Eva Todor disse em uma entrevista que o ator tem que ser intuitivo e buscar na própria história uma “bagagem” para a construção da personagem, o que não minimiza a importância do laboratório. O que você acha disso?

Concordo plenamente. Isso me lembra também de uma fala da diretora Celina Sodré no evento Diálogos sobre Teatro Documentário. Ela disse que o processo de criação na arte sempre é autobiográfico. O que ela sinaliza em sua fala é que em alguns trabalhos, como no caso das encenações documentárias, vemos uma hipótese de ser determinadamente e deliberadamente autobiográfico no espaço da criação. Contudo, em outros trabalhos, mesmo que esta dimensão autobiográfica não esteja explícita, é impossível dizer que ela não esteja presente, no caso dela estar subjacente. As circunstâncias de vida do artista sempre conduzem o seu processo de criação, visto que a questão autobiográfica é inerente à circunstância de criação.

A História oral contribuiu com a propagação do Biodrama e do Teatro Documentário?

Totalmente. A História Oral consiste em contribuir para a História Oficial a partir de outras fontes de saberes que não só os documentos textuais.  Dessa maneira, surgem outros tipos de fontes documentais com tons próximos à intimidade e à subjetividade.  O biodrama partilha vínculos ideológicos com a História Oral na medida em que engloba pessoas comuns que não tiveram oportunidade de expressar sua voz como contribuição de saberes e conhecimentos para a História Oficial.  O teatro documentário permite que a história não seja apreendida somente pela forma clássica da leitura de livros, mas também sim apreendida em outras possibilidades de experiências, e aqui incluímos a cena teatral na qual o espectador está em contato direto com a presença física do que está sendo performado. O teatro documentário permite que o registro documental seja presentificado em cena pela memória viva e ativa, em estado de experiência, de dança, de movimento.  Acredito que o biodrama é uma conexão do teatro com os outros saberes, campos de conhecimento e aportes culturais.  Por isso, acredito que o meu livro seja interessante não somente para criadores, estudantes e críticos de teatro, mas também para todos aqueles cujas pesquisas e interesses esbarrem nos temas das novas subjetividades contemporâneas.      

A atriz Sylvia Bandeira protagonizou um espetáculo de Aimir Labak chamado Marlene Dietrich – As Pernas do Século, que ficou em cartaz no Teatro Maison de France. Ele conta a trajetória de uma cantora alemã que cantou para os soldados americanos durante a II Guerra Mundial. O espetáculo pode ser considerado um biodrama ou para isso a personalidade precisa estar viva?

Para ser considerado um Biodrama, é necessário que o sujeito que está sendo biografado pelo espetáculo esteja vivo. Isso se dá por dois motivos. Primeiro porque este sujeito pode ser levado diretamente para a cena. Mas caso ele não esteja presente em cena, a condição que esteja vivo permite que os artistas e o diretor possam estar em contato e trabalhar diretamente com ele durante o processo de criação. Daí o viés político do Biodrama que valoriza o contato direto e a experiência como “motores” do processo criativo. No caso da peça que você citou, vemos um claro exemplo de “drama histórico”, mas não é possível identificar linhas de Biodrama. 

Como o biodrama se distingue do teatro de ficção?

Hoje, há toda uma corrente dos estudos literários que questiona o campo da autobiografia e traz uma nova abordagem teórica que seria a autoficção. Este conceito defende que em todos os tipos e níveis de relato, nunca há uma autobiografia que corresponda fielmente aos fatos verídicos, pois a memória está sempre misturada com camadas de criação. É interessante porque nos faz pensar que a memória sempre é recriação. Daí o surgimento da noção de autoficção, porque essa ideia está atrelada à noção de que a construção do sujeito sempre é uma performance de si. Logo, o biodrama, visto como uma produção de subjetividade, também seria uma forma de autoficção. Além disso, é importante lembrar que toda subjetivação do discurso também sempre é a construção que se estabelece em relação ao olhar do outro. Em algum de seus livros, Barthes dizia que todo sujeito é um efeito de linguagem. Da mesma maneira é o biodrama que funciona como a criação de subjetividade e, consequentemente, de linguagem. O conceito de autoficção permite pensar que as instâncias de autor e de narrador se constroem mutuamente.  Por isso a autoficção seria uma forma de performance. Nessa medida, o biodrama é relacional como um processo comunicativo.  O olhar que o espectador faz sobre este outro que está em cena também é uma construção do seu próprio eu.  Cria-se uma experiencial de nível etnográfico na qual o performer biodramático é confrontado com o olhar do espectador, e vice-versa.       

O fato do biodrama ter adquirido diferentes ressonâncias estéticas e poéticas desde a criação original em 2002 dificultou enquadrá-lo numa definição específica?

No teatro contemporâneo, identificamos diferentes práticas cênicas relacionadas ao teatro do real. É importante observar que as definições acadêmicas sobre estas linhas de experimentação no teatro possuem questões que devem ser problematizadas. No entanto, apesar das problemáticas, elas também nos ajudam a criar um campo de referências para compreender pesquisas que sinalizam pontos comuns. Há uma diversidade de experiências e seria muito difícil especificar as fronteiras entre uma e outra. No caso do Biodrama, posso dizer que ele se expressou como uma experiência significativa no contexto teatral da Argentina de 2002 até hoje. Inicialmente, o projeto se oficializou como um Ciclo de peças apresentadas no Teatro Sarmiento, durante o momento em que Vivi Tellas foi curadora do espaço. Posteriormente, ela desenvolveu o projeto Arquivos Tellas que foram as peças de biodrama que ela dirigiu. O movimento ganhou forte ressonância dentro e fora da Argentina. Há muitas peças que foram criadas e estimuladas por este movimento inicial. Atualmente, Vivi Tellas continua desenvolvendo oficinas, espetáculos e curadorias a partir do seu projeto estético de Biodrama. O último espetáculo criado foi “Personas”. Para comemorar o aniversário de setenta anos do Teatro Sarmiento em Buenos Aires, Vivi Tellas criou um espetáculo que foi protagonizado pelos próprios trabalhadores do teatro. Em cena, eles trouxeram para o público a história dos bastidores, do local e de todos os espetáculos que por ali passaram.

Um caso que achei interessante no livro foi o de Vanina Falco, uma atriz que descobriu que foi adotada, e em pleno regime militar, conseguiu, por conta do teatro, processar o próprio pai, coisa que a justiça argentina da época não permitia. Pode falar um pouco deste caso?


Na minha opinião, o caso de Vanina Falco é um dos acontecimentos mais interessantes de discussão sobre o Teatro Documentário. Em cena, a atriz revela que há pouco tempo descobriu que seu irmão foi ilegalmente apropriado e que seus verdadeiros pais foram desaparecidos quando tinham dezessete e dezoito anos.  Vanina conta que antes ela e seu irmão pensavam que seu pai era vendedor de remédios para depois sim descobrir que foi um policial que trabalhava no Serviço da Inteligência.  Inclusive para pensar esta radical experiência de teatro que entrelaça herança política com documento cênico, vale comentar que Mi vida después se transformou numa prova jurídica a partir do relato de Vanina Falco ao falar contra o seu pai.  O depoimento da performer se transformou num elemento de prova criminal para a instituição da Justiça na Argentina. É interessante notar como um espetáculo teatral surgido a partir do mote do biodrama se transformou num instrumento jurídico.  Após este acontecimento divulgado em instâncias públicas, como foi o caso do meio jornalístico La Nación, houve uma significativa mudança do espetáculo no momento em que Vanina Falco fazia a cena que relatava o fato.  No caso, a performer explica em cena como ocorria a cena desde as primeiras apresentações e incorpora no seu relato como o espetáculo serviu de prova jurídica para colocar o seu pai na cadeia.  Isso revela o caráter de atualidade pertinente ao biodrama como uma variante contemporânea do teatro documentário. Aqui encontramos um exemplo de como o teatro conseguiu burlar os códigos institucionais para falar de uma questão que antes não estava permitida por meio de instâncias jurídicas.  A atriz conseguiu transformar a sua experiência artística numa provocação para a instituição penal de seu país.  As camadas afetivas foram transpostas artisticamente para o teatro, tornando-o fonte de testemunha e instrumento de penalização contra o pai da atriz.  Este exemplo mostra como o teatro foi usado como uma nova implicação de moral, já que não se trata somente de encenar formas de vida, mas também de avaliar, julgar e punir.  A atriz não se contentou com os limites impostos pela justiça e fez uso de seu próprio ofício artístico como um instrumento jurídico.  Ela questionou a condição jurídica de seu país e provocou uma mudança penal.  Em Mi vida después, percebemos o político se superpondo a uma questão pessoal.     


Entrevista com Kiury, o cover e sósia brasileiro de Charlie Chaplin.

A primeira postagem de 2015 do blog “Encontro de Cultura” será com o ator Kiury, o cover e sósia brasileiro de Charlie Chaplin. Chaplin até hoje é uma referência mundial no meio artístico. Ele completou em 2014 cento e vinte e cinco anos de nascimento. 2014 também foi o ano do centenário do personagem Carlitos. Como foi fazer esta dupla comemoração nos palcos?

Desde 2013, eu comecei  a pensar em um projeto para celebrar os 100 anos do personagem Carlitos, e os 125 do nascimento do Charles Chaplin.   Em abril de 2014, na semana do aniversário do nascimento do Chaplin, eu estreei o “Centenário Chaplin”. O espetáculo itinerante percorreu algumas instituições de caridade, e não teve fins lucrativos. Foi um trabalho voluntário. Precisava homenageá-lo dessa maneira, e também agradecê-lo por tudo o que recebi e recebo com esse trabalho.  Foi bastante emocionante! Levei o “Chaplin” para locais muito especiais.  Para realizar esse trabalho eu tive o apoio do Filipe Lima, que fez assistência de direção,  Janaína G.Saad, que fez a produção, Alessandra Grani, que gravou os áudios utilizados no espetáculo, Valkiria Nilzen, que elaborou todos os acessórios das cenas, e Giovana Lima, que fez a sonoplastia e contrarregragem.  Todos os apoiadores embarcaram no projeto, e doaram o trabalho. 



Em algum dia você se incomodou em ser reconhecido como o Chaplin e não como Kiury?

Não. O foco desse trabalho é o Chaplin, e foi ele quem criou o personagem “Carlitos”, que também é chamado de “Charlie, Charlie Chaplin, Charles Chaplin, Charlot, ou apenas Chaplin.” Tenho muito respeito com esse trabalho,e cuido com muito carinho da imagem do Chaplin. Quando eu acabo um evento ou show,  procuro não mostrar o meu rosto de “cara lavada”, pois quero deixar a “magia” do Chaplin na mente das pessoas.  Hoje, as pessoas conhecem o meu trabalho, pois são anos interpretando o “Chaplin”. Porém, tudo foi natural. Conquistei o meu espaço com a quantidade de eventos, por sempre trabalhar com empresas grandes,e ter conseguido o respeito dos fãs do Chaplin. Além dos eventos, que muitas vezes faço performances, ações ou recepções, eu faço shows e esquetes teatrais interpretando o Chaplin, e levei o personagem para espetáculos Teatrais. Tenho consciência que estou levando a imagem dele e não a minha, mas isso é orgulho! Chaplin foi, é e sempre será o maior mito do cinema.



Quando você decidiu interpretar Chaplin?

Muitas pessoas comparavam os meus traços com os dele. Sempre foi assim! Sempre falavam do meu olhar... Em 2006, eu estava no casting de uma agência de atores, e me ligaram para interpretar o Chaplin. Foi muito interessante a história! Como os meus primeiros eventos já foram grandes, pois fiz recepção em um evento da “Net”, e um da rádio paulistana “Energia 97”, eu percebi que poderia investir. Antes de começar esse trabalho, eu já era fã do Chaplin, o que contribuiu muito.  Então, decidi que esse seria um trabalho paralelo ao meu trabalho de ator.



Pode falar de “Revaudeville”, primeiro espetáculo onde você interpretou o Chaplin?

Em 2012, eu entrei para o elenco do “Revaudeville”, que foi um espetáculo de variedades. A atmosfera era bem retro! Foi uma experiência maravilhosa! Além da interpretação do Chaplin, eu fiz assistência de direção para a Lady Burly, que dirigia o espetáculo, e escrevi as esquetes teatrais. Foi a primeira vez que levei o Chaplin para um espetáculo de Teatro. Já tinha 6 anos de trabalho de cover, mas ainda não tinha feito nenhuma peça interpretando o Chaplin. Nessa época eu já fazia shows, performances e esquetes teatrais em eventos, casas de shows e espaços públicos, mas sentia a necessidade de entrar em uma peça de Teatro com esse personagem. Em “Revaudeville”, eu trabalhei vários lados do personagem, fui do drama para a comédia.



O Chaplin de alguma forma te influenciou em outro personagem?

Em 2002, quando eu ainda não interpretava o Chaplin, eu entrei para um espetáculo infantil, e estudei o Chaplin para compor o personagem. Não é curioso?  Nessa época eu nem imaginava que seria cover dele! O espetáculo era o “Pinócchio”, e eu interpretei o Grilo Falante. Para criar a linguagem corporal do personagem, eu estudei o Chaplin, Commedia Dell Arte, dança- teatro e circo. Era um personagem lúdico, caricato e cheio de vida! O Charles Chaplin sempre será uma influência no meu trabalho, pois ele é o meu ator favorito.



Como você lida com as críticas?
Para fazer crítica você precisa saber por onde começar... Muitos críticos são artistas frustrados, isso é o que sempre me dizia Walter Portella, que foi o meu primeiro mestre Teatral.
A melhor crítica é aquela que aponta os pontos positivos e negativos. Nem todos tem o talento para isso! Temos que ter cuidado ao criticar o outro. A crítica incomoda quando ela é maldosa, e possui um ar de inveja.

Você já montou algum drama?

Eu atuei em várias peças dramáticas. Mas só dirigi dois dramas.
Em 2002, eu montei o espetáculo “Delírios”, quando assumi a direção.
Em 2003, eu escrevi o texto “Um Dia Você Vai Entender”, que é um espetáculo adolescente, e fala sobre homossexualidade. A primeira montagem aconteceu no ano de 2004, e foi uma das grandes loucuras que fiz na carreira, pois mesmo sem muitos recursos, apoios e patrocínio, eu aluguei um teatro, corri atrás de público e coloquei o espetáculo em cartaz. Agradeço eternamente ao elenco que esteve comigo nessa aventura!!!
Desde 2009, Filipe Lima, que é um amigo pessoal, dirige o espetáculo. “Um dia você vai entender” já esteve em cartaz em vários teatros de São Paulo, e passou por 7 temporadas. Já atuei em algumas temporadas. Nunca tivemos patrocínios, mas conseguimos alguns apoios. Muitos profissionais da área artística já passaram por essa peça, e foram importantes para a história dela. Existe uma mensagem de amor e luta contra o preconceito. Já emocionamos muitos adolescentes, jovens e famílias.

Como ator qual personalidade você não interpretaria?

Não tenho pudores com isso, e interpretaria qualquer tipo de personagem. Acredito que o ator precisa estar disponível e entregue. Eu não trabalharia em alguns programas de TV ou espetáculos, que eu acredito que poderiam agredir o público ou espectador. Acredito que o artista tem a obrigação de respeitar a plateia. Também não ligaria o meu nome com algumas empresas em filmes comerciais, principalmente se eu souber de algum histórico de machismo, racismo, homofobia ou desrespeito com os animais. Personagem eu faria qualquer um, trabalhos nem todos! Existe diferença.

Você é engajado em projetos sociais, onde o seu Chaplin tem suma importância. Qual a repercussão deste seu trabalho?

Sempre trabalhei com voluntariado. Isso vem da minha família. Minha mãe sempre teve, e tem uma alma voltada para a caridade. Realizei trabalhos em hospitais, ministrei muitas aulas de Teatro em comunidades carentes, e fazia shows de palhaços gratuitos. Sinto a necessidade de levar o Chaplin, e doar essa Arte. Acho importante fazer esse tipo de trabalho. Você precisa doar, e não apenas querer receber.

 


Como estão seus projetos?

Hoje, passaram aquelas ilusões que muitos atores e atrizes possuem! (risos) Eu deixo a vida e a carreira me levarem! Não tenho pressa.



Fale um pouco das peças em que atuou :

Comecei minha carreira em 1998, atuei em alguns espetáculos Teatrais. Trabalhei com os diretores Walter Portella, que me dirigiu nos espetáculos “Os cabeças quadradas” e “Infidelidade teu nome era amor”, Péricles Martins, que me dirigiu em “Anjos Profanos”, Charles Daves, que me dirigiu no musical infantil “A pequena sereia”, Edson Mendes, que me dirigiu no infantil “Pinócchio”, Ivaldo Bertazzo, que dirigiu o musical “Mãe Gentil”, que eu fiz parte do coro dançante, e trabalhei com outros diretores. Todos os processos foram importantes.



Para finalizar, qual mensagem você quer passar para as pessoas que acompanham o seu trabalho?

Não quero ser apenas um artista de entretenimento. Gosto de conteúdo! Quero através do meu trabalho fazer as pessoas sorrirem acreditarem nelas, mas quero fazer elas refletirem, pensarem ou conhecerem sobre algum assunto. Acredito no papel social do artista, e preciso ser um instrumento para isso. A arte existe para o mundo ser mais precioso, e não sobrecarregado de situações e coisas que prejudicam a nossa existência. A arte faz as pessoas desejarem um mundo melhor para elas, para o planeta e para os outros. Namastê.