quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Ser ou não ser?

Não sei se Hamlet é o primeiro homem moderno. Não digo que não o é, apenas constato a minha dúvida, sabendo desde já que a negatividade da resposta não desmerece a obra shakespereana, que inspirou sem sombra de dúvida, nomes como Fiódor Dostoiévski, Johann Wolfgang, Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche e Lacan. Afirmar ou negar qualquer coisa a respeito desta obra de Shakespeare é quase o mesmo que caminhar na corda bamba com perna de pau.
Em síntese, Hamlet é um dos personagens mais complexos, admirados e apaixonantes da literatura mundial, suscitando distintas interpretações que permeiam, inclusive, o Tempo Presente.
Shakespeare esboçou em linhas dramatúrgicas o que acontecia em seu tempo. Retratou a época, mas com suma perfeição. Independente de qualquer coisa, inaugurou a capacidade de autoreflexão ao colocar o homem diante da morte e diante de si mesmo. Portanto, Hamlet é um homem livre, mas ainda refém de uma força superior, no caso, o espectro do pai que pede a vingança. Na quinta cena, Hamlet chega a apelar ao céu e ao inferno, o que demonstra que apesar do autor ser renascentista, a obra se passa em plena Era Medieval.
A origem inglesa do autor certamente pesa na obra. Ao contrário de outros países da Europa, o protestantismo adentrou  a Inglaterra de forma gradual, o que justifica a catolicidade dos personagens shakespereanos. E o protestantismo é justamente uma das vias do Renascimento.
         Os soldados avistam o epectro do rei falecido, logo, avisam ao príncipe Hamlet. O espectro diz que foi assassinado e que está a condenado a vagar pela noite e jejuar nas chamas durante o dia até pagar os seus pecados, mais uma representação do dogma católico – o purgatório. O espírito ainda lamenta que morreu sem a extrema-unção e sem a confissão. 

Nesta conjuntura, Shakespeare levanta questões comuns ao ser humano, questões que permeiam a vida e a morte, reflete uma nova maneira de pensar em Deus, uma maneira que gradualmente se concretiza no ideário moderno.
É bem provável que Shakespeare tenha se inspirado na hoje esquecida Tragédia Espanhola de Thomas Kid e na história do príncipe dinamarquês Amlet, contada por Saxo Grammaticus no livro Historiae Danicae, e que deve ter chegado ao conhecimento do nosso autor por meio da versão de François de Beelforest, em Histories tragiques (1570).

Agora, com minhas breves observações introduzidas, posso garantir que o meu questionamento é puramente de cunho filosófico. Ele surge diante da subjetividade do próprio personagem, que não tem a consciência de assumir os atos por si mesmo e vive na eterna dúvida de ser ou não ser, abrindo margem para ser uma intercessão entre o pensamento medievo e o pensamento moderno, amparado, ainda assim, pelos caracteres da tragédia grega, sobretudo, em uma linguagem edpiana.
Em nome do pai, Hamlet, o príncipe da Dinamarca resolve se vingar do tio, agora, seu padrasto, e portanto, ocupante do trono da Dinamarca. Orestes, personagem da tragédia grega Electra, escrita por Eurípedes passou por um dilema semelhante. Precisava, a mando do deus Apolo, vingar o assassinato do pai, matando a assassina, que no caso, era sua mãe. Visto que já não cabia inserir o panteão grego na Era Medieval, tampouco, na Moderna, fora utilizado o espectro do próprio rei, que em vez de ordenar, pede a vingança. Percebe-se aí o livre arbítrio.
Há muita coisa em comum entre as duas obra clássicas. Hamlet conta com a amizade de Horácio, enquanto, Orestes conta com a amizade de Pílades.  Tanto Shakespeare quanto Eurípedes bebem da fonte de Aristóteles. Além disso, ambos os heróis estão de regresso do estrangeiro. Essas coincidências não são em vão, visto, que os autores renascentistas buscam resgatar os valores da antiguidade clássica. Há quem diga que o helênico não carrega a agonia de Hamlet, mas pode-se dizer que Electra carrega.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2007.
 ______. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2007.
BRANDÃO, Juanito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
ÉSQUILO. Trilogia de Orestes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.
LORANT, André. Hamlet. In: GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 436-439.
SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2008