sábado, 16 de maio de 2020

Três Contos Sobre Viver


Durma com um barulho desse, de Antônio Evangelista



         Eram seis horas da manhã. Alguns moradores chegavam do trabalho, outros se preparavam para pegar no batente. As crianças sonolentas seguiam para a escola. Até que um transeunte curioso parou de andar quando percebeu algo de anormal. Aos poucos, um a um ia parando e olhando na mesma direção do transeunte curioso.
            Alguns olhavam incrédulos. Outros faziam galhofas. Outros ainda filmavam com a câmera do celular para postar no Instagram ou no grupo do Whatsapp. A nova mania nacional! Todos cochichavam entre si ou com seus botões. 
- O que esse louco faz em cima do muro?
- Parece até que está morto! Vejam como ele espuma pela boca!
De fato, havia um homem deitado em cima do muro. Um muro estreito que o deixava com os braços e as pernas pendentes, como um bicho preguiça. O que realmente o denunciava morto. Abaixo havia outro muro, com cacos de vidros que impediam a entrada de invasores gatunos. E o portão da casa ao lado era todo com lanças pontuadas.
A rua já estava repleta de curiosos que, até apostavam sobre a situação do pobre homem. Uns apostavam que ele estava morto; outros, que estava bêbado! Vejam até que ponto chegou o ser humano. Havia até uma repórter de uma TV muito famosa por ser sensacionalista.
Somente uma pessoa teve o coração tocado para chamar uma ambulância do Corpo de Bombeiros: um menino que vendia jornais nas suas horas vagas da escola.
Com os bombeiros chegou uma viatura da polícia, que já pedia para a multidão dispersar para os heróis poderem trabalhar.
Os bombeiros chegaram no ponto onde estava o suposto moribundo que, atordoado, começou a se levantar. O tenente da operação fez as perguntas de praxe: qual o nome, quantos anos tinha e quantos dados ele mostrava na mão.
Os corajosos socorristas conseguiram resgatá-lo e trazê-lo até a rua, onde os que apostaram que ele estava morto reclamavam o dinheiro perdido. Ainda atordoado com tanta gente, com os olhos vermelhos de tanto lacrimejar e com bastante coriza escorrendo pelo nariz, perguntou o motivo de tanto alvoroço. Se havia alguma celebridade ou político naquele bairro. A repórter se aproximou e falou:
- Por favor, senhor. Diga para os nossos espectadores como se sente depois de juntar tanta gente na rua, nos seus quinze minutos de fama e qual motivo o fez ficar em cima do muro.                            
- Eu me sinto muito é incomodado! Ontem eu estava com uma baita dor de cabeça, chorando pelos olhos e pelo nariz de tanta gripe. Fui até a UPA, estava lotada, fiquei o dia todo esperando e quando chegou a minha vez, o médico foi chamado para uma cirurgia de emergência. Saí de lá furioso, parei uma birosca, tomei umas pingas e, à noite, fiquei perambulando pela rua. Não consegui dormir a noite toda. Só agora de manhã. Quando eu estava começando a relaxar, escutei essa zoeira toda. Quem consegue dormir com um barulho desse, madame?

Mosaico, de Brunno Vianna


Uma janela. De frente para ela, outra janela. Luzes acesas. Dançam feito vagalume. Ruas vazias. Olhar a lua virou um costume.



Clima de Tensão, de Brunno Viana

Tira um sapato e o outro. Abre a porta. Fecha a porta. Passa álcool em gel na maçaneta. Passa álcool em gel nas mãos. Espirra. Clima de tensão! Corre para o banheiro, lava a mão, lava a torneira, lava o mundo inteiro e aguarda, mas outro espirro não vem. Sente um alívio. Senta no sofá, pega o controle remoto e liga a televisão. O telejornal fala sobre a pandemia. Muda de canal. O outro telejornal fala sobre a pandemia. Clima de tensão! Liga para os amigos. Uns dão boas notícias, outros dão más notícias. Desliga a televisão. Precisa ir à farmácia. Abre a porta. Fecha a porta. Passa álcool em gel na maçaneta. Coloca um sapato e o outro. Olha para o sol. Espirra. Clima de tensão! Pensa em ir ao médico mais tarde. Pensa em não ir. Precisa ir à farmácia. Sai. Em menos de quinze minutos já está em casa novamente. Tira um sapato e o outro. Abre a porta. 


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