“A teatralidade é essencialmente
humana. Todo mundo tem dentro de si o ator e o espectador Representar num
espaço estético, seja na rua ou no palco, dá maior capacidade de
auto-observação. Por isso é político e terapêutico.” Com as palavras de Augusto
Boal começo a entrevista com o diretor e dramaturgo Davi Giordano, que é
mestrando em artes cênicas pela UNIRIO, é ator formado pela CAL e se formou em
artes cênicas com habilitação em direção teatral pela UFRJ. Seu trabalho foi
reconhecido no Brasil, na Argentina e nos Estados Unidos. Davi, conte-nos um pouco a sua trajetória e a
experiência de apresentar um trabalho seu fora do Brasil.
Atualmente trabalho como diretor,
professor e escritor de teatro. Também desenvolvo trabalhos no campo da
performance. Meu trabalho está permeado pelas relações entre o teatro e a
performance. Em geral, não gosto muito de me definir, porque acredito que o
artista contemporâneo é múltiplo em seus fazeres e qualquer possibilidade de
definição acaba mais restringindo do que alargando a compreensão de um
trabalho. Eu gosto de trafegar por
zonas de criação que alimentam as minhas experimentações. Como diretor, estou
no lugar da experimentação cênica. Na sala de aula, gosto de trazer
curiosidades, interesses e provocações para compartilhar e aprender junto com
meus alunos. Já como escritor, desenvolvo as reflexões de tudo aquilo que venho
pensando. Por isso, meus textos transitam entre ensaios, artigos, dramaturgias,
poemas, críticas etc. Além disso, sempre gosto de alimentar o meu campo de pesquisa
ao estudar o trabalho de outros artistas. Em
relação ao contato com outros países, acho que sempre é uma forma maravilhosa
de estar em contato com debates e práticas sobre o que vem se desenvolvendo em
âmbito de arte contemporânea ao redor do mundo. Acredito que estar junto com
outros artistas, críticos e profissionais é sempre uma forma de estimular a
formação continuada, sendo consequentemente uma possibilidade de estimular
novas inspirações para o meu trabalho artístico e também para os meus escritos.
Além disso, acho importante sempre estabelecer parcerias com artistas
estrangeiros e pensar em possíveis plataformas de intercâmbio.
Foi mais difícil montar uma
peça sobre Eva Perón, que já existiu ou a fictícia “A Primeira Dama da Costa
Bela”?
São peças muito diferentes em
termos de processos de criação. Por isso, não sei se seria apropriado dizer
“mais fácil” ou “mais difícil”, pois foram caminhos de linguagem, estéticas e
poéticas muito distintos. No caso de “Eva Perón”, eu estava trabalhando a
partir da dramaturgia de Raúl Copi que descobri enquanto estive morando em
Buenos Aires. Tive o contato com o universo do autor através de meu amigo
Helder Thiago Maia, que trabalha com estudos literários e que na época também
morava na Argentina. Quando Helder me contou sobre o universo queer,
irreverente e ousado de Copi, fiquei fascinado e pedi para ler a tradução que
ele recentemente havia terminado. Na primeira leitura, fiquei completamente
apaixonado, porque o texto do Copi me parecia uma mistura de Almodovar, América
Latina, política, comédia e provocação. Além disso, sempre fui tocado pela
história de Eva Perón. Por todos esses motivos, resolvi montar este texto. Por
se tratar de um texto de outro autor e também de um universo polêmico e pouco
conhecido no Brasil, o processo artístico necessitou de muita pesquisa
histórica. Por isso, antes de voltar ao Brasil, eu coletei bastante material de
pesquisa direto de Buenos Aires. Este material foi fundamental para trabalhar a
criação junto com os atores e trazer para o público uma melhor compreensão
sobre o universo copiano. Já na montagem de “A Primeira Dama da Costa Bela”,
tudo foi muito diferente. Para começar, eu estava dirigindo um texto de minha
própria autoria. Isso já modifica todo o processo de criação, pois como diretor
eu tinha uma apropriação completa sobre o que faria dentro da sala de ensaio
com meus atores. No caso de “A Primeira Dama da Costa Bela”, a narrativa conta
a história de uma primeira dama que vive num país ficcional da América Central
chamado Costa Bela. Fizemos uma pesquisa sobre o universo das telenovelas
mexicanas e sobre a cultura da América Latina, principalmente em relação à
América Central. Contudo, por se tratar de um país ficcional, tínhamos plena
liberdade de inventar o nosso próprio universo cênico. Isso foi muito gostoso
para todos os membros artísticos do processo de criação. Nesse sentido,
acredito que a diferença principal entre ambas as peças se deu nas metodologias
diferencias da pesquisa em relação ao processo de criação. Como última
observação, acho interessante destacar que ambas as peças possuem muitos pontos
de encontro: falam sobre o universo feminino, fazem um retrato da América
Latina, trabalham sobre níveis de comédia política, a atmosfera da família, os segredos
e as hipocrisias das relações humanas. É interessante notar que o texto de “A
Primeira Dama” foi escrito em 2009, um ano antes de ter morado na Argentina e
conhecer o texto de “Eva Perón”. Sendo que na “Primeira Dama”, a protagonista
Verônica Stiller possui uma cadelinha chamada Evita, que naquele momento foi um
nome escolhido sem nenhum propósito político. Posteriormente, a atriz Débora
Amorim que fazia a protagonista me chamou atenção para o fato e nisso
resolvemos inserir uma fala numa das últimas cenas em que Verônica revela que o
nome de sua cachorra é uma homenagem para Eva Perón. Acho interessante porque
esses jogos de intertextualidades foram surgindo de forma natural sem que
houvesse uma intenção intelectual diretiva e impositiva. Sempre gosto quando o
processo de criação nos revela esses agenciamentos.
Suas peças são todas
melodramáticas? O que te levou a seguir pelo caminho do melodrama? Quais suas
principais influências nessa área?
Acho interessante que você não é
o primeiro a dizer isso. Muitos reconhecem a linguagem do melodrama presente em
minhas encenações. Contudo, não é algo que planejei. Na verdade, para cada peça
busco a investigação de gêneros próprios que misturam diferentes linguagens.
Nunca consegui compreender minhas peças dentro de gêneros rígidos e específicos.
Por isso, para cada peça, busquei brincar com a criação de gêneros. Para Adormecida, disse que era uma “comédia
carioca de humor negro trash”; para Eva
Perón, considerei uma “encenação queer minimalista”; e para A Primeira Dama da Costa Bela, em
consenso com o elenco denominamos como uma “comédia surrealista melodramática
latino-americana”. De qualquer forma, as obras sempre se completam com o olhar
do público. Se você me diz que observa o melodrama em todas as encenações, fico
interessado nessas impressões.
Recentemente você publicou o
livro “Teatro Documentário Brasileiro e Argentino” pela editora Arm@zém
Digital. De onde surgiu a ideia para escrever esse livro? O que é e como surgiu
o Teatro Documentário?
A ideia do livro surgiu a partir
da minha vivência e contato com a cultura argentina. Em 2010, fui aceito para
participar de dois semestres acadêmicos na Argentina por conta de um
intercâmbio de convênio bilateral entre a UFRJ e a Universidad de Buenos Aires.
Inicialmente, eu fui para cursar disciplinas de Cinema e Crítica de Arte. No
meio do processo, entrei em contato com o Biodrama por conta de uma oficina de
seis meses lecionada pela própria Vivi Tellas, criadora do gênero. Além disso,
dentro da universidade, eu tive contato com Pamela Brownell que trabalha
diretamente com Vivi Tellas. Assim, o meu contato com o Biodrama se deu dentro
e fora da universidade, permitindo uma vivência com o universo biodramático de
forma teórico-prática. Quando voltei para o Brasil, em 2011, iniciei um projeto
orientado pelo professor Denilson Lopes e financiado pela bolsa de iniciação
científica PIBIC/UFRJ. O projeto inicialmente tinha como foco geral a
investigação de encenações contemporâneas cinematográficas que buscassem problematizar
o sujeito cotidiano a partir da estética do Comum. Ao escolher o tema específico
da minha pesquisa, eu trouxe a linha do Biodrama como uma forma de
problematizar a inserção e representação do homem comum no teatro. Foram doze
meses escrevendo. Depois foram mais dois anos para movimentar a produção dos
custos para bancar a publicação do livro. Ao todo, considerando desde o meu
primeiro contato com o tema, o processo completo tomou quatro anos até o
nascimento do livro que aconteceu em novembro do ano passado (2014) com
lançamento performático realizado dentro da bela Ocupação Glauce Com Vida no
Teatro Glauce Rocha (RJ).
5) Qual a diferença entre o
Teatro Documentário argentino e o brasileiro?
Na Argentina, o Teatro
Documentário tem um campo de produção artística e pesquisa maior do que no
Brasil, visto que, desde 2002, o Biodrama se fortaleceu enquanto Ciclo e
estimulou um movimento teatral muito forte no país, incluindo a sua influência em
outros lugares do mundo. Por isso, é possível dizer que, na argentina, os
espectadores já possuem um contato maior com linhas de teatro que trabalham com
biografias cênicas, histórias reais, experimentação do real em cena, encenação
de documentos não fictícios etc. No Brasil, o Teatro Documentário e o Biodrama
começaram a se tornar mais conhecidos alguns anos depois, principalmente por
conta de trabalhos de grupos e artistas que pesquisam algumas dessas abordagens
na cena, como a Cia.Teatro Documetário (de Marcelo Soler), Nelson Baskerville,
Janaína Leite, Cia. Hiato, Carolina Virguez, Marcelo Braga, Celina Sodré, Grupo
Garimpo, Zula Cia. de Teatro, Grupo Teatro Carmin etc.
Augusto Boal teria sido um dos
pioneiros no Teatro Documentário no Brasil, através de espetáculos como Arena
Conta Zumbi e Arena Conta Bolívar. Pode falar um pouco sobre isso?
Em meu livro, identifico que uma
importante encenação documentária que tivemos no Brasil foi o espetáculo
“Marias do Brasil”, dirigido por Augusto Boal. O espetáculo foi criado em 1998
e era composto por empregadas domésticas que nunca haviam tido nenhum contato
prévio com a experiência teatral. A proposta do projeto original de Boal era
trazer para o teatro a realidade das empregadas domésticas a partir do ponto de
vista dessas próprias mulheres. Elas
vieram de diferentes estados do Brasil, tendo como semelhança o fato de que
todas tinham o mesmo nome: Maria. Ao
longo de 14 anos, essas mulheres criaram quatro peças de Teatro-Fórum, conceito criado pelo próprio diretor Augusto Boal. Em
relação às outras encenações que você menciona, certamente podemos identificar
linhas do documentário que estão presentes nas peças. Todas as produções de
Augusto Boal estão compreendidas numa linha de teatro político que se aproxima
do Teatro Documentário. É importante mencionar que Augusto Boal não denominava
as suas peças como Teatro Documentário. Esta é uma leitura que nós estamos fazendo
hoje sobre as suas produções. Outro dado importante de mencionar é que
pesquisas recentes identificaram a presença de associações filantrópicas
italianas e movimentos teatrais operários em alguns bairros de São Paulo nos
anos setenta que já revelavam características do Teatro Documentário. Acredito
que precisamos de mais tempo de pesquisa para aprofundar as origens do Teatro
Documentário no Brasil. Este seria o tema para um novo livro.
Qual a diferença entre o
Teatro Documentário e o Drama histórico?
No livro Documentary Theatre in the United States, o autor Gary Fisher
Dawson esclarece bem essa distinção. Ele diz que o Drama Histórico seria uma
encenação cuja dramaturgia busca fazer uma representação da história a
partir de fontes históricas secundárias para recriar a realidade de acordo com
a visão criativa do dramaturgo. Há uma
camada de metalinguagem e ironia dramatúrgica, na medida em que os fatos
históricos são vistos pela ótica do dramaturgo, quem tem o direito de
interpretar a história pela sua ótica subjetiva e criativa. Enquanto isso, o Teatro Documentário se caracteriza por uma operação de distanciamento
de teatro épico que toma a história a partir de uma micro-perspectiva (tendo
como base a atualidade e contemporaneidade). Outra diferença é que o Teatro Documentário tem como base fontes
primárias que buscam sustentar a evidência dos fatos históricos e persuadir o
espectador para uma linguagem da sua época.
A realidade é documentada para o público a partir de uma perspectiva
privada. A discussão é bastante complexa. Por isso que, no meu livro, eu
explico que uma divisão acadêmica sobre o que seja ou não o teatro documentário
pode servir de forma positiva para analisar as primeiras produções sobre tal
gênero. Porém, fazer uso de tais
divisões didáticas para compreender as produções contemporâneas seria um falso
problema, tendo em vista a diversidade de especificações que a prática
documentária no teatro foi ganhando ao longo dos anos. Temos a impressão que as nomenclaturas
clássicas, principalmente o uso de termos como épico, naturalismo, drama, ficção etc podem acabar muito mais restringindo as possibilidades
formais do teatro documentário. Já o meu
trabalho caminha no sentido de entender a complexidade de elaborações sobre o
tema.
O teatro documentário
primordial contesta o sistema de atuação emocional que diz respeito à primeira
fase do trabalho de Stanislavski?
O Teatro Documentário não
pressupõe um modelo específico de atuação. Há diversas linhas de experimentação
e pesquisas-cenas, o que nos permite pensar que não devemos pressupor uma estética nem uma
poética específica para esse tipo de trabalho, mas sim pensar como há inúmeros
caminhos de criação. Isso nos faz pensar que o teatro documentário deve ser
visto em sua multiplicidade ao invés de um discurso unívoco. Dessa forma, há
vários Teatro(s) Documentário(s). Esta perspectiva de visão amplia e aprofunda
o debate que ainda é pouco recente no Brasil. No caso da atuação, há peças
documentárias que trabalham com atores que não são profissionais. As formas de
atuação dependem sempre do conceito de encenação do diretor. Isso varia de espetáculo
para espetáculo.
A atriz Eva Todor disse em uma
entrevista que o ator tem que ser intuitivo e buscar na própria história uma
“bagagem” para a construção da personagem, o que não minimiza a importância do
laboratório. O que você acha disso?
Concordo plenamente. Isso me lembra
também de uma fala da diretora Celina Sodré no evento Diálogos sobre Teatro Documentário. Ela disse que o processo de
criação na arte sempre é autobiográfico. O que ela sinaliza em sua fala é que em
alguns trabalhos, como no caso das encenações documentárias, vemos uma hipótese
de ser determinadamente e deliberadamente autobiográfico no espaço da criação.
Contudo, em outros trabalhos, mesmo que esta dimensão autobiográfica não esteja
explícita, é impossível dizer que ela não esteja presente, no caso dela estar
subjacente. As circunstâncias de vida do artista sempre conduzem o seu processo
de criação, visto que a questão autobiográfica é inerente à circunstância de
criação.
A História oral contribuiu
com a propagação do Biodrama e do Teatro Documentário?
Totalmente. A História
Oral consiste em contribuir para a História Oficial a partir de outras fontes
de saberes que não só os documentos textuais.
Dessa maneira, surgem outros tipos de fontes documentais com tons
próximos à intimidade e à subjetividade.
O biodrama partilha vínculos
ideológicos com a História Oral na medida em que engloba pessoas comuns que não
tiveram oportunidade de expressar sua voz como contribuição de saberes e
conhecimentos para a História Oficial. O
teatro documentário permite que a história não seja apreendida somente pela
forma clássica da leitura de livros, mas também sim apreendida em outras
possibilidades de experiências, e aqui incluímos a cena teatral na qual o
espectador está em contato direto com a presença física do que está sendo performado.
O teatro documentário permite que o registro documental seja presentificado em
cena pela memória viva e ativa, em estado de experiência, de dança, de
movimento. Acredito que o biodrama é uma
conexão do teatro com os outros saberes, campos de conhecimento e aportes
culturais. Por isso, acredito que o meu
livro seja interessante não somente para criadores, estudantes e críticos de
teatro, mas também para todos aqueles cujas pesquisas e interesses esbarrem nos
temas das novas subjetividades contemporâneas.
A atriz Sylvia Bandeira
protagonizou um espetáculo de Aimir Labak chamado Marlene Dietrich – As Pernas
do Século, que ficou em cartaz no Teatro Maison de France. Ele conta a
trajetória de uma cantora alemã que cantou para os soldados americanos durante
a II Guerra Mundial. O espetáculo pode ser considerado um biodrama ou para isso
a personalidade precisa estar viva?
Para ser considerado um Biodrama,
é necessário que o sujeito que está sendo biografado pelo espetáculo esteja
vivo. Isso se dá por dois motivos. Primeiro porque este sujeito pode ser levado
diretamente para a cena. Mas caso ele não esteja presente em cena, a condição
que esteja vivo permite que os artistas e o diretor possam estar em contato e trabalhar
diretamente com ele durante o processo de criação. Daí o viés político do
Biodrama que valoriza o contato direto e a experiência como “motores” do
processo criativo. No caso da peça que você citou, vemos um claro exemplo de
“drama histórico”, mas não é possível identificar linhas de Biodrama.
Como o biodrama se distingue
do teatro de ficção?
Hoje, há toda uma
corrente dos estudos literários que questiona o campo da autobiografia e traz
uma nova abordagem teórica que seria a autoficção. Este conceito defende que em
todos os tipos e níveis de relato, nunca há uma autobiografia que corresponda
fielmente aos fatos verídicos, pois a memória está sempre misturada com camadas
de criação. É interessante porque nos faz pensar que a memória sempre é
recriação. Daí o surgimento da noção de autoficção, porque essa ideia está
atrelada à noção de que a construção do sujeito sempre é uma performance de si.
Logo, o biodrama, visto como uma produção de subjetividade, também seria uma
forma de autoficção. Além disso, é importante lembrar que toda subjetivação do
discurso também sempre é a construção que se estabelece em relação ao olhar do
outro. Em algum de seus livros, Barthes dizia que todo sujeito é um efeito de
linguagem. Da mesma maneira é o biodrama que funciona como a criação de subjetividade
e, consequentemente, de linguagem. O conceito de autoficção permite pensar que
as instâncias de autor e de narrador se constroem mutuamente. Por isso a autoficção seria uma forma de
performance. Nessa medida, o biodrama é relacional como um processo
comunicativo. O olhar que o espectador
faz sobre este outro que está em cena também é uma construção do seu próprio
eu. Cria-se uma experiencial de nível
etnográfico na qual o performer biodramático é confrontado com o olhar do
espectador, e vice-versa.
O fato do biodrama ter
adquirido diferentes ressonâncias estéticas e poéticas desde a criação original
em 2002 dificultou enquadrá-lo numa definição específica?
No teatro contemporâneo,
identificamos diferentes práticas cênicas relacionadas ao teatro do real. É
importante observar que as definições acadêmicas sobre estas linhas de
experimentação no teatro possuem questões que devem ser problematizadas. No
entanto, apesar das problemáticas, elas também nos ajudam a criar um campo de
referências para compreender pesquisas que sinalizam pontos comuns. Há uma
diversidade de experiências e seria muito difícil especificar as fronteiras
entre uma e outra. No caso do Biodrama, posso dizer que ele se expressou como
uma experiência significativa no contexto teatral da Argentina de 2002 até
hoje. Inicialmente, o projeto se oficializou como um Ciclo de peças
apresentadas no Teatro Sarmiento, durante o momento em que Vivi Tellas foi
curadora do espaço. Posteriormente, ela desenvolveu o projeto Arquivos Tellas que foram as peças de
biodrama que ela dirigiu. O movimento ganhou forte ressonância dentro e fora da
Argentina. Há muitas peças que foram criadas e estimuladas por este movimento
inicial. Atualmente, Vivi Tellas continua desenvolvendo oficinas, espetáculos e
curadorias a partir do seu projeto estético de Biodrama. O último espetáculo
criado foi “Personas”. Para comemorar o aniversário de setenta anos do Teatro
Sarmiento em Buenos Aires, Vivi Tellas criou um espetáculo que foi
protagonizado pelos próprios trabalhadores do teatro. Em cena, eles trouxeram para o
público a história dos bastidores, do local e de todos os espetáculos que por
ali passaram.
Um caso que achei interessante
no livro foi o de Vanina Falco, uma atriz que descobriu que foi adotada, e em
pleno regime militar, conseguiu, por conta do teatro, processar o próprio pai,
coisa que a justiça argentina da época não permitia. Pode falar um pouco deste
caso?
Na minha opinião, o
caso de Vanina Falco é um dos acontecimentos mais interessantes de discussão
sobre o Teatro Documentário. Em cena, a atriz revela que há pouco tempo descobriu
que seu irmão foi ilegalmente apropriado e que seus verdadeiros pais foram
desaparecidos quando tinham dezessete e dezoito anos. Vanina conta que antes ela e seu irmão
pensavam que seu pai era vendedor de remédios para depois sim descobrir que foi
um policial que trabalhava no Serviço da Inteligência. Inclusive para pensar esta radical
experiência de teatro que entrelaça herança política com documento cênico, vale
comentar que Mi vida después se
transformou numa prova jurídica a partir do relato de Vanina Falco ao falar
contra o seu pai. O depoimento da
performer se transformou num elemento de prova criminal para a instituição da
Justiça na Argentina. É interessante notar como um espetáculo teatral surgido a
partir do mote do biodrama se
transformou num instrumento jurídico. Após
este acontecimento divulgado em instâncias públicas, como foi o caso do meio
jornalístico La Nación, houve uma
significativa mudança do espetáculo no momento em que Vanina Falco fazia a cena
que relatava o fato. No caso, a performer explica em cena como ocorria a
cena desde as primeiras apresentações e incorpora no seu relato como o
espetáculo serviu de prova jurídica para colocar o seu pai na cadeia. Isso revela o caráter de atualidade
pertinente ao biodrama como uma variante contemporânea do teatro documentário. Aqui
encontramos um exemplo de como o teatro conseguiu burlar os códigos
institucionais para falar de uma questão que antes não estava permitida por
meio de instâncias jurídicas. A atriz
conseguiu transformar a sua experiência artística numa provocação para a
instituição penal de seu país. As camadas
afetivas foram transpostas artisticamente para o teatro, tornando-o fonte de
testemunha e instrumento de penalização contra o pai da atriz. Este exemplo mostra como o teatro foi usado
como uma nova implicação de moral, já que não se trata somente de encenar
formas de vida, mas também de avaliar, julgar e punir. A atriz não se contentou com os limites
impostos pela justiça e fez uso de seu próprio ofício artístico como um instrumento
jurídico. Ela questionou a condição
jurídica de seu país e provocou uma mudança penal. Em Mi
vida después, percebemos o político se superpondo a uma questão
pessoal.
